Carta Aberta de uma Apaixonada pela Vida ao Vereador Petterson Prado

Há cinco anos, trabalhando em um Hospital do Sistema Único de Saúde (SUS) de grande porte como infectologista do Serviço de Controle de Infecção Hospitalar, todos os dias passava visita nas UTIs (Unidades de Terapia Intensiva ) do local. Certo dia, em frente às divisórias de vidro do leito de isolamento, vejo uma mulher coberta por tecidos, respirando com a ajuda de aparelhos e com grande quantidade de medicações e tubos mantendo-a viva. Aproximam-se o médico e a enfermeira de plantão, que me contam tratar-se de Dona Maria*, que queimou 80% de seu corpo após ter acendido uma fogueira com álcool. A senhora, mãe de cinco filhos menores, ao ganhar uma cesta básica de alimentos deparou-se com outra adversidade, não possuía dinheiro para comprar o gás que faria seu velho fogão funcionar. No momento, o que conseguia com poucos reais era comprar algum tanto de álcool no posto de gasolina e com ele acender seu fogareiro improvisado. Ao fazê-lo, diante de seus pequenos, o quase inevitável aconteceu e a mulher, tentando apagar o fogo, mais exposta ficou.

Tinha eu cerca de nove anos de formada e diante daquele leito chorei pela intensidade do sofrimento humano, sendo incapaz de continuar a visita por alguns momentos.

Coordenando o Núcleo de Assistência do Centro de Referência em DST/AIDS de Campinas há dois anos, há duas semanas choro novamente através do vidro que me separa de nosso Leito-dia, quando assisti um de nossos médicos dar a notícia à Joana*, uma antiga paciente nossa que há dois anos estava sem possibilidade de tratamento efetivo para AIDS pois o vírus HIV que dentro dela reside estava resistente a todos os medicamentos disponíveis no mercado e vinha visivelmente caminhando para a morte, que após o uso de uma nova medicação por três meses, esta havia tido uma excepcional recuperação imunológica e conseguido ter sua carga de vírus na mínima quantidade possível. Após a notícia, Joana chora de emoção abraçada a seu médico e eu também não posso conter minha felicidade.

Estes dois simples casos, dentre tantos que poderíamos passar dias contando, ilustram quão infeliz e equivocado foi o vereador Petterson Prado em sua fala na Câmara Municipal de Campinas do dia 13 de maio de 2009.

Neste discurso, a fim de atacar a “máfia da indústria farmacêutica”, o edil dispara sua metralhadora contra “a maioria dos médicos que é comprada por laboratórios”, o Ministério da Saúde (especialmente no que diz respeito ao Programa Nacional de AIDS), a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), etc. Macula e lança lama na prática diária de tantos que como eu escolheram fazer de sua vida profissional dedicação a cuidar de pessoas, porque infelizmente falar em curar quase sempre é prepotência e equívoco.

Eu, vereador, que fiz Medicina porque sou apaixonada por este complexo ser chamado humano, que milito para manter a dignidade de minha profissão todos os dias, horas batalhando para que o SUS seja o que ele deve ser (o melhor plano de saúde e o único em que seremos tratados com equidade), horas sendo professora universitária por acreditar que com bons exemplos de humanidade e dedicação profissional meus alunos possam vir a ser melhores médicos e em ambos sendo mal remunerada pelo tempo que dedico à todas as pessoas que me procuram e não somente àqueles que eu julgo representar, senti-me inicialmente irada e depois triste.

Dona Maria morreu da ignorância causada pela falta de informação e acesso à cidadania e desespero que acometem grande parte da população deste país e que foram amplamente cultivadas pelas classes dominantes, seja econômica ou politicamente. Governo após Governo, em todos os níveis, o que vemos? Corrupção, descaso, desvio de verbas que seriam destinadas principalmente à saúde e educação para que pessoas como Dona Maria pudessem primeiro decidir se queriam ter cinco filhos e se assim o quisessem, criá-los com dignidade e não precisar morrer para isso.

Aparentemente todos que detém o poder para mudar esta história simplesmente a mantém como está, lavam as mãos ou passam a sujá-las também, perpetuando a desgraça social, pois esta propicia que continuemos elegendo os mesmos que nos apunhalam.

Apesar disto, Joana encontrou ajuda num local cuja regra básica é acolher qualquer pessoa, independente de sua etnia, classe social, orientação sexual ou nível cultural. Foi acolhida no SUS na sua plenitude e viva e sorrindo feliz está depois de oito anos de diagnóstico de AIDS, pois a coragem e ousadia do Brasil de dar medicação contra o HIV para todas as pessoas a beneficiou durante todos estes anos e principalmente agora, com a nova medicação que a devolveu ao convívio familiar, tirou suas dores e complicações. Esta nova medicação é livre de efeitos colaterais? Não, assim como muitos morrem de complicações da quimioterapia, muitos milhares serão por ela resgatados da morte, ganhando tempo e qualidade de vida.

Talvez se o senhor fosse sábio como minha avó, que estudou somente até a antiga “quarta série”, saberia que como sempre escutei dela, às vezes o que mata também cura e vice-versa.

Sendo eu uma feroz crítica da indústria farmacêutica, que é gigante e que sim, visa lucrar, tenho que reconhecer que eles vem tomando para si a pesquisa científica, nem sempre de maneira ética. Eles desenvolvem para vender, mas dominam o mercado científico porque ao longo de muitos anos os governos do mundo foram diminuindo investimento em pesquisa de ponta (que é caríssima), deixando para a iniciativa privada este nicho para exploração. Vereador, para eles, tudo é mercado e por isso, apesar de muitas canetinhas que ganhei em quase quinze anos de profissão, jamais deixei que o que um representante comercial me dizia influenciasse o que faço ou prescrevo. Assim como eu, a maioria dos médicos que conheço.

Se há médicos despreparados e que atuam mal? Sim, mas as causas disto não são tão superficiais como a atuação da indústria na propaganda, merecem discussão profunda entre quem realmente entende o que é ser bom médico, os órgãos de classe e Governos, pois este fato também é uma construção histórica e um reflexo da perda de valores éticos da sociedade.


Por fim, lamento que a tribuna da Câmara, que poderia ser usada para tantos e tantos debates e propostas que realmente beneficiassem a população seja usada para palavras levianas, que por sorte não encontrarão terreno fértil entre os que amam sua honrada profissão.

Cláudia Barros Bernardi
Médica Infectologista, apaixonada pelo ser humano no que ele tem de belo e de feio

*nomes fictícios

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